terça-feira, 3 de agosto de 2010

1982 - Berlengas: Paraíso ou ilha do diabo ?

9-OUTUBRO-1982 /
ExpressoRegiões
Ix
PARA ALGUNS turistas, e para Raul Brandão (ver livro "Os Pescadores") a ilha Berlenga é um paraíso. Para os faroleiros, que lá devem permanecer por períodos de três dias seguidos (quando os temporais não os obrigam a aumentar aquele período), é a «ilha do diabo».
Quando o barco, que partiu de Peniche, se aproxima, ao vermos aquela montanha inóspita, de um castanho encarniçado agressivo, um pescador local explica: «Lá para Janeiro ou Fevereiro é que isto está bonito, cheio de flores.» Mas à volta, o fundo verde-sombreado do mar, a beleza murmurante das grutas, fazem com que nos rendamos. A praia t pequena. O restaurante, da Comissão Concelhia de Turismo de Peniche, é péssimo. E passar ali toda a tarde, à espera que o barco regresse a Peniche, chega a ser doloroso. Tanto mais que falta a coragem para subir aqueles penhascos escarpados.
Em 81, as Berlengas foram oficialmente declaradas reserva natural. Entre Fevereiro e Setembro, lá está o bairro dos pescadores cheio de uma população expectante, que vive do mar e dos escassos turistas que diariamente aparecem no
«berlengueiro». Durante o resto do ano, só lã fica o faroleiro. Mas, para definir bem o arquipélago, nada melhor do que
transcrever o diálogo que Raul Brandão manteve com um faroleiro e que registou no seu livro "Os Pescadores".
Nem a pneumónica lá chegou:
«... Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sem pre igual e sempre renovado. De Inverno nenhum barco atraca às Berlengas. Só e Deus no mais belo sitio da costa portuguesa!... Atrevo-me a falar a um velho musa-ranho, de focinho arreliador, que está metido no farol, de costas para o mar, fingindo que me não vê, a esfregar e a polir os metais reluzentes.
—Hem?...
—Hum...
Rosna e não diz palavra que se entenda.
— Olá!
Olha-me com desprezo e continua a polir os metais já polidos, como se eu não existisse. Mas não desanimo facilmente e teimo:
— Que beleza, han?...
Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pano fora, encara-me de frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiança cheio de cólera.
— Que beleza o quê? Que beleza?... Isto?!
— E ri-se. — 0 vento e o mar!
Sempre o vento e o mar O vento, que no Inverno não me deixa chegar à porta, com mar todo o dia, toda tod a a noite a bramir! O mar desesperado, o vento desespera do... Eu não sou um faroleiro — sou um náufrago. Que beleza hem?...
Nem posso dormir! Nem dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar ecoa, ameaçando submergir esta ilha do diabo!
Julguei-me autorizado a interrompê-lo:
— Mas no Verão é esplêndido...
— Nem olho. Só me resta uma esperança — fugir. Se não me mudam, endoideço. O amigo sabe quantos endoideceram já? Três!... E atirando os braços para o ar:
— Uma calamidade! Aqui não se sabe nada, aqui não chega nada. Nunca! Nunca! Nem a pneumónica aqui chegou. E não posso ter uma couve, não posso ter uma abóbora... Os coelhos devoram tudo. Ê uma praga!
— Dê-lhes tiros.
— Tiros?! — E rl-se com dois
Berlengas: paraíso ou ilha do diabo’?
As Berlengas, cercadas pelas suas grutas magníficas, com o Forte, agora transformado em bairro dos Pescadores
dentes e desprezo — Quando que- a da Estela, a Pedra Redonda, aro um coelho, ato um anzol a um Pedra de Todo-o-Peixe, o Guipan, meto o pau na lura e firo o lhão... Duas manchas bastam-me coelho para fora; quando quero para toda a vida, uma etérea, aum peixe, ato um anzol a uma li- outra sangrenta, com um castelo nba e deito a linha à água... Mas o queimado e requeimado como um que eu quero é fugir! Fugir! Fugir velho cachimbo ao pé do vidro para muito longe, para onde não grosso da água. Duas manchas e oiça o mar, para onde não veja o um pormenor: o fio de areia onde
mar! ficou impresso um pé delicado de Roncou... Percebi que repetia—mulher… com escárnIo: — Que beleza, Regresso num fim de tarde toda han!... — E voltando-se, outra de oiro, num mar todo verde. São vez com o pano na mão, conti- outras três horas a remo. Deito nuou a esfregar e a polir com de ne no fundo enxuto do barco e sespero os metals — de costas vi- absorvo-me na luz que se transforradas para o mar... ma. Ê roxa agora. Desvanece-se. Olho pela derradeira vez. Ê pa- mais. Estou encerrado numa gran-ra sempre que quero fixar a Ima- de Jóia translúcida e vIva — vIva!
gem, a última, a definitiva, a es- — que pouco e pouco muda de sencial, do morro vermelho a cor. Violeta, toda violeta, e val emergir do mar imóvel, cheio de desmaiando como quem morre de-pedras espumantes — a da Velha, vagarinho com saudade...»
Publicado no Expresso Regiões em 1982

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